Detalhes nem tão pequenos do Gás para Crescer*

Com a perspectiva de redução da participação da Petrobras em diversos segmentos da cadeia de gás natural, o  Ministério de Minas e Energia (MME) lançou em julho de 2016 a iniciativa Gás para Crescer, cujo principal objetivo é o de promover aprimoramentos nas diretrizes e no arcabouço legal e regulatório do setor. Desde então, o Gás para Crescer realizou várias reuniões e fóruns de discussão com stakeholders, definiu diretrizes e selecionou temas prioritários, produziu análises e abriu consulta pública sobre os temas propostos, recebeu contribuições de diversas entidades, criou um Comitê Técnico para o Desenvolvimento da Indústria do Gás Natural (CT-GN) – composto por representantes de instituições públicas e privadas do setor e coordenado pelo MME – e instaurou oito subcomitês temáticos, que são responsáveis pelo estudo e proposição de aprimoramentos, os quais serão validados pelo CT-GN. Grandes e importantes realizações em um curto espaço de tempo.

A iniciativa do MME de lançar um programa voltado essencialmente para as questões do gás natural merece comemorações e aplausos, pois os rumos desse setor no Brasil foram negligenciados pelo planejador energético desde sempre. A lógica do gás natural no país esteve sempre atrelada à do petróleo, já que praticamente todo o gás do país ainda é ofertado pela Petrobras – seja através da produção associada ao petróleo ou pela importação (da Bolívia ou de Gás Natural Liquefeito – GNL). Há tempos que o setor de gás pedia um planejamento e uma política desenhada especificamente para o gás natural, que levasse em conta suas características e interações com os demais energéticos pelo lado da oferta e da demanda.

Ainda mais importante, o Gás para Crescer inaugurou uma nova era de interlocução do governo com os agentes do setor. Pela primeira vez em muitos anos, as diferentes visões e expectativas sobre o papel do gás natural no mix energético brasileiro passaram a ser discutidas abertamente e de maneira ampla nos muitos eventos, seminários e fóruns de discussão. Foi criado um espaço para o diálogo construtivo dos agentes com o formulador de política e o regulador, onde cada agente teve a oportunidade de explicitar suas propostas para destravar investimentos no setor. A retomada desse canal de diálogo entre o governo e o mercado representa o principal avanço para a construção de um setor competitivo e mais transparente no Brasil. Um debate direcionado ao energético, e aberto para os agentes de toda a cadeia do gás – desde a exploração e produção até a distribuição para o consumidor final – é talvez inédito no país. Mais um motivo para comemorar a iniciativa.

Mas o diabo mora mesmo nos detalhes, e o caminho entre uma boa iniciativa e sua implementação bem sucedida é longo e tortuoso.

Um primeiro “detalhe” que chama atenção é a decisão sobre a priorização de temas para os subcomitês, particularmente considerando o cronograma extremamente desafiador proposto no Gás para Crescer. A pressa é compreensível, uma vez que a Petrobras está dando seguimento ao seu programa de desinvestimento de forma independente, conforme as necessidades da empresa – ou seja, como deve ser. Mas, nesse contexto de urgência, a definição correta e adequada de prioridades é o primeiro – e fundamental – passo para o sucesso de uma iniciativa que pretende aprimorar as regras do setor para receber novos entrantes. Causa, portanto, certa estranheza a escolha de nada menos do que oito temas para os subcomitês do CT-GN. Não apenas a quantidade parece excessiva, mas alguns dos temas endereçados como prioritários poderiam ser alocados em uma segunda rodada de priorização, sem maiores prejuízos para o setor.

Subcomitê Coordenador Relator
Escoamento, processamento e regaseificação de GNL EPE IBP e ANP
Transporte e estocagem ABRACE EPE e ANP
Distribuição ABEGAS ABIVIDRO
Comercialização ABRACEEL ABIAPE
Aperfeiçoamento da estrutura tributária do setor de gás natural IBP ABEGAS
Gás natural matéria prima MDIC ABIQUIM
Aproveitamento do gás natural da União ABRACE EPE
Integração entre os setores de gás natural e energia elétrica SPE/MME e EPE ABRAGET e IBP

Por outro lado, questões que podem afetar a livre entrada dos agentes – como o acesso ao sistema de transporte e às infraestruturas essenciais – e outras que podem resultar em simplificação de regras e redução de custos de transação – por exemplo, o aprimoramento da estrutura tributária – mereceriam maior destaque e aprofundamento. São temas complexos e interdependentes, que exigem tempo de reflexão e amadurecimento. Além disso, a construção do mercado de gás e a reformulação do seu arcabouço regulatório e legal é dinâmica, e está inserida em um cenário de elevada incerteza. Surgirão novas questões, difíceis de antecipar, e certamente terá que haver correções de rumo durante os próximos anos. Como os recursos são limitados, seria prudente direcionar maiores esforços para o aprofundamento desses pontos, que atacam princípios básicos da formação de um mercado e, portanto, podem trazer resultados mais expressivos para a criação de um ambiente competitivo.

Outro “detalhe” importante é o próprio funcionamento CT-GN e dos subcomitês. Provavelmente em nome de uma maior interação e diálogo com os agentes, o CT-GN e os subcomitês (SC) contam com a participação de entidades que representam os diversos segmentos do setor – produtores, distribuidores, consumidores, representantes do governo, entre outros. Os coordenadores e relatores dos SCs foram definidos entre os próprios participantes, por votação, durante as primeiras reuniões para a formação dos subcomitês. A ideia por trás desse arranjo parece ser o favorecimento da construção conjunta de uma agenda de propostas. Na prática, como esperado, as posições e interesses dos agentes são divergentes – muitas vezes opostos – e a convergência espontânea de visões e proposta entre os agentes é praticamente inviável. Em última instância, alguém tem que escolher um caminho e arbitrar. Com tantas posições e interesses antagônicos em jogo, o “excesso de democracia” pode acabar por paralisar a tomada de decisões.

O aporte de informações e conhecimento por parte dos agentes nesse processo é extremamente importante, pois cada um deles conhece as especificidades do seu segmento de atuação. Da mesma forma, a capacidade do governo de ouvir, questionar e dialogar com o setor é o que permite que esse conhecimento aportado se transforme em diretrizes e regras que favoreçam o desenvolvimento de um mercado isonômico, equilibrado e transparente. Mas a ampliação do diálogo com o setor não pode, e nem deve, ocorrer em prejuízo ao poder legitimo de decisão do formulador de política. O próprio mercado reconhece o papel do governo, e certamente espera que o governo atue de forma eficiente e assertiva no desenho das novas regras para o setor de gás no Brasil. Cada um no seu quadrado.

Vale lembrar ainda que, durante o período de consulta pública do Gás para Crescer, foram recebidas mais de setecentas páginas de contribuições de cerca de 50 instituições e profissionais – incluindo associações do setor de gás e petróleo, elétrico e industriais, além de consultores, advogados e acadêmicos. A elaboração dessas contribuições envidou esforços intensos e a alocação de recursos humanos e financeiros dos agentes que contribuíram. De modo geral, as entidades e profissionais que estão participando da intensa agenda de reuniões semanais dos subcomitês do CT-GN também participaram ativamente dos debates e da consulta pública, e suas propostas e comentários estão disponíveis na página do MME. Em tempo de recursos escassos no país, uma abordagem mais parcimoniosa e eficiente seria a análise e consolidação dessas contribuições e a elaboração de minutas de propostas de políticas pelo governo a partir do material disponibilizado pelos agentes na consulta pública. Eventuais dúvidas poderiam ser esclarecidas através de uma audiência pública, onde o formulador de política apresentaria suas propostas e justificativas para o não acolhimento de determinadas sugestões dos agentes.

A saída da Petrobras de diversos segmentos da cadeia de gás tem o potencial de promover profundas transformações no setor de gás, com riscos de uma possível ruptura e desarranjo nesse processo de transição, como uma possível substituição de um monopolista estatal por um monopolista privado. Mas há também uma enorme oportunidade para alavancar o setor de gás e atrair investimentos. A situação pede um regulador independente e atuante, e um formulador de política ciente do seu papel e capaz de apontar a direção e decidir qual caminho será tomado, corrigindo rumos quando necessário. No entanto, a realidade tem o péssimo costume de se impor sem pedir licença. Na ausência de uma política clara e tempestiva, as forças do mercado atuam e ditam suas próprias regras.


*Publicada originalmente no site da Brasil Energia em Março de 2017

2018-07-16T17:29:15+00:00 15/05/2018|Categorias: Gás Natural|0 Comentários

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